Criminalização da cultura periférica como mecanismo de controle social sob a perspectiva da criminologia crítica
Resumo
1. NOÇÕES INTRODUTÓRIAS
A cultura periférica é, historicamente, marginalizada e alvo de repressão contínua estatal, Essa constatação pode ser auferida em razão do passado escravocrata do Brasil, tendo em vista que a cultura da periferia é composta e construída pela comunidade negra. Desse modo, refletir sobre a Criminologia Crítica diante desse parâmetro cultural traz posicionamentos, também, sobre como decisões jurídicas e o funcionamento do judiciário brasileiro opera de forma colaborativa para o processo da criminalização cultural das classes desfavorecidas sociais, atribuindo, a partir disso, estigmas para essa população.
Nesse cenário, o presente estudo tem por objetivo analisar a criminalização da cultura periférica através da ótica da Teoria do prisma da Criminologia Crítica,
buscando identificar a seletividade do sistema penal, bem como a influência da mídia diante desse aspecto, buscando evidenciar o processo de criminalização
dessa cultura, principalmente diante dos gêneros rap e funk.
A metodologia utilizada neste trabalho consiste em uma pesquisa bibliográfica e documental, através da análise de dissertações de mestrado, trabalhos de
conclusão de curso, artigos científicos, legislações, documentos, livros, decisões judiciais, objetivando entender o processo histórico, sociológico e jurídico da
criminalização da cultura periférica. Além disso, tem-se como referencial teórico desta pesquisa os subsídios teóricos da Criminologia Crítica e as perspectivas
sobre a pauta racial no Brasil.
Sendo assim, a pesquisa caracteriza-se pela presença da diversidade de material que aborda a referente problemática sobre as culturas periféricas e o processo de criminalização, buscando ampliar os conhecimentos e os debates necessários em face da importância da reflexão sobre o objeto de estudo ora abordado.
2. CRIMINALIZAÇÃO DA CULTURA PERIFÉRICA
2.1 O processo de criminalização
Em primeiro momento, impera ressaltar sobre o processo de criminalização. No que se refere ao tema, tem-se que as sociedades transferem ao Estado o “monopólio da violência legítima” (WEBER, 2003, p. 60), ao passo que selecionam uma parcela reduzida de pessoas e submetem à coação e a consequente imposição de uma pena. Esse processo de seleção é determinado como “criminalização”, considerado como o resultado da gestão de um conjunto de agências que compõem o sistema penal (ZAFFARONI, ALAGIA, SLOKAR, 2002, p. 7). Assim, a criminalização é desenvolvida por duas etapas: primária e secundária.
Zaffaroni (2002) leciona que a criminalização primária é tida como um ato meramente formal, estabelecida como lei penal material, incriminando ou permitindo
a punição de um determinado grupo de pessoas. Ou seja, a criminalização primária trata-se do processo da criação de leis penais diante das condutas e ações
consideradas como e delituosas.
Já a criminalização secundária é considerada a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas, que tem lugar quando as agências de criminalização secundária
do sistema penal identificam uma pessoa a quem se confere a realização de conduta criminalizada de maneira primária (ZAFFARONI, ALAGIA; SLOKAR, 2002).
Nesse cenário, tem-se a teoria criminológica do etiquetamento, conhecida também como Labelling Approach ou Labelling Theory, que surge com o intuito de explicar o tratamento diferenciado que permeia o sistema penal e que rege a seleção criminalização secundária.
2.2 A teoria do etiquetamento
Comumente, as teorias criminológicas tradicionais (biológicas, socialização deficiente e de estrutura social defeituosa) tem como enfoque a criminalidade,
observando suas causas e possíveis soluções. No entanto, o ideal é buscar compreender como ocorre o processo de
criminalização, buscando analisar as razões de algumas condutas e pessoas,
independentemente da danosidade social de suas ações, são estigmatizadas como
delinquentes, enquanto outras, que podem, inclusive, serem mais danosas à sociedade, ficam isentas de qualquer etiquetamento criminal e se passam por sujeitos honestos (MUÑOZ CONDE, HASSEMER, 2008, p. 92).
Nesse cenário, surge a Teoria do Etiquetamento como uma teoria da criminalização (GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, 2008). Para tanto, cumpre identificar como ocorre o processo de etiquetamento. Edward Schur (1971, p. 56) ressalta que o referido processo é desenvolvido em quatro etapas: estereotipagem; interpretação retrospectiva; negociações; e imersão no papel.
A estereotipagem trata-se de generalizações tendenciosas sobre um determinado grupo de indivíduos, comumente desfavoráveis e exageradas. Já a interpretação retrospectiva busca descrever o processo de olhar o passado para identificar as razões anteriores não vistas que sejam capazes de explicar o comportamento indesejável cometido no presente (SCHUR, 1971).
Já o terceiro elemento, tido como Negociações (SCHUR, 1971) entre o etiquetado e os aplicadores da etiqueta. Nesse contexto, é possível compreender que, na
ocasião em que o réu e Ministério Público discutem as acusações, na realidade, estão discutindo qual será a etiqueta a ser aplicada no imputado. Logo, nesse ponto, os estereótipos e interpretações retrospectivas exercem papel determinante.
Por último, tem-se a “imersão no papel” (SCHUR, 1971), compreendido como um processo social e psicológico por meio do qual o indivíduo assume o rótulo que lhe foi determinado. Trata-se da soma total da estereotipagem, interpretação retrospectiva e negociação. Sendo assim, as ocupações legítimas não estão mais disponíveis ao indivíduo que já foi rotulado, de modo que sua única alternativa restante é aceitar o papel de delinquente que já lhe foi dado. Portanto, aquele que foi rotulado como criminoso, mesmo que anteriormente não o fosse, agora tem o papel que lhe foi dado.
Desse modo, pode-se considerar como criminoso aquele sujeito a quem, por sua conduta e algo mais, a sociedade conseguiu atribuir com sucesso o rótulo de criminoso. Embora tenha a concretização da conduta criminosa, esse fator considerado “algo mais” tornará o praticante efetivamente criminoso. Esse “algo mais” é elaborado por uma espécie de índice de marginalização do sujeito: quanto maior o índice de marginalização, maior a probabilidade de ele ser dito criminoso. O referido índice cresce de maneira proporcional ao número de posições estigmatizadas que o sujeito acumula (SELL, 2007).
A partir da compreensão do processo de etiquetamento é possível entender a maneira que as agências de criminalização secundárias se orientarão no processo de seleção dos casos que serão efetivamente escolhidos para adentrar no âmbito do sistema criminal e de como se determina a criminalização da cultura periférica.
2.3 O etiquetamento como mecanismo de controle social
No que concerne ao controle social, a criminalização secundária atua como uma ferramenta altamente discriminatória e seletiva, ao passo que a seletividade do sistema é operada através das agências de criminalização secundária, especialmente pelos órgãos de segurança pública.
Necessário apontar que, embora as agências de criminalização secundária realizem a seleção, tal fato não implica que ela o realize arbitrariamente, de modo que também é condicionada ao poder de outras agências, especialmente diante das agências de comunicação social (BATISTA, 2002; VIANNA, 2014).
Dessa forma, a criminalização é tida a partir da seguinte seleção: fatos “brutos” ou grosseiros – a “obra tosca” da criminalidade; e de pessoas que, por sua incapacidade de acesso ao poder político ou econômico, causem menos problemas para serem criminalizadas (ZAFFARONI, ALAGIA; SLOKAR, 2002).
Nessa linha, é proporcionado um estereótipo negativo no imaginário coletivo diante dessas pessoas frequentemente etiquetadas como delinquentes, ao passo que são alvos de diversos preconceitos e marginalização. Portanto, ocorre a finalização do círculo que desencadeia em um processo de criminalização e, consequentemente, um controle social, formal e informal, mais forte que o exercido sobre outros grupos de pessoas rotineiramente livres da etiqueta de criminosos. A partir disso, o sistema penal opera, portanto, como um filtro, selecionando determinadas pessoas que estão em situação de vulnerabilidade em face do poder punitivo, observando a situação de risco criminalizante em que a pessoa se coloca (ZAFFARONI, ALAGIA; SLOKAR, 2002).
2.4 Aplicação da teoria do etiquetamento diante da criminalização da cultura periférica
A partir disso, insurge trazer a análise para a criminalização da cultura periférica, ao passo que Shecaira (2020) aborda a repressão implícita que existe com o funk, apontando o preconceito por possuir raízes negras e, principalmente por advir das camadas pobres, evidenciando a estigmatização descrita pela teoria do etiquetamento, criminalizando àqueles identificados por esse tipo de música.
O funk, considerado como um mecanismo de resistência que busca dar voz a esta parcela da sociedade mais vulnerável deve ser visto como uma manifestação política e cultural, e o seu combate fere as liberdades protegidas constitucionalmente. Desse modo, criminalizar essa manifestação artística demonstra os diversos preconceitos enraizados, de modo que essa manifestação evidencia o sentimento de exclusão e revolta usado como forma de comunicação entre os jovens pobres incomoda a classe dominante (ALVES, 2018).
A estigmatização do movimento está relacionado diretamente com esse confronto do status quo social feito pelo rap e o funk, principalmente ao abordar a realidade das periferias, expondo assuntos como o racismo, a criminalidade, a violência policial e a exploração social. A tentativa de criminalização está intrinsecamente relacionada com a classe social do que com o funk em si, uma vez que os fundamentos utilizados para seu impedimento, como o consumo de substâncias ilícitas, ocorrem também nos eventos da classe média e alta.
Nesse sentido, é notória a relação do racismo com o sistema penal diante da criminalização da cultura periférica, uma vez que a maioria da população que compõe a periferia é negra e pobre, bem como que, historicamente, ocorre a criminalização das manifestações artísticas e religiosas dos povos que escravizados. Evidenciando, portanto, a manutenção dos mecanismos de controle social das instituições repressivas estatais (COELHO, 2017).
Sendo assim, toda a problemática acerca da criminalização da cultura periférica reflete uma extensão do papel do Direito Penal, que deveria ser usado como última ratio na proteção de bens jurídicos mais importantes, no entanto, esbarra em um controle das classes baixas e manutenção da ordem hierárquica, baseado na proteção de uma suposta ordem pública, por meio da associação da cultura periférica a tipos penais presentes no ordenamento jurídico (CYMROT, 2011).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir da análise apresentada, constata-se que o Estado objetiva manter o controle social por meio da repressão penal, buscando legitimar suas ações criminalizando os agentes considerados inimigos do Estado, de modo que proporciona a marginalização corriqueiramente dessas pessoas, sob o pretexto de proteção à ordem pública.
Dessa maneira, essa criminalização atinge os indivíduos etiquetados como criminosos e, consequentemente, a cultura que estes consomem e produzem são consideradas alvos contínuos de tentativas de criminalização, visto que se tratam de manifestações artísticas que retratam sobre o cenário em que estão inseridos socialmente. Assim, os gêneros rap e funk, principais formas de manifestação cultural periféricas, demonstram os diversos fatores sociais problemáticos inseridos nos contextos das favelas no Brasil, bem como a realidade vivenciada pelas pessoas que vivem nesses cenários.
Sendo assim, a partir da marginalização das expressões artísticas de pessoas periféricas, que, em suma, são racializadas e pobres, resta evidente a prática de seletividade penal no âmbito cultural desses grupos sociais.
Isto posto, o presente estudo conclui que, embora tenha ocorrido o reconhecimento do funk como movimento cultural popular recentemente, ainda não houve esse reflexo no âmbito prático, principalmente por essas manifestações possuírem um caráter de confronto ao status quo social, expondo assuntos como o racismo, a criminalidade e a violência policial, que continuam sendo frequentes nas regiões marginalizadas do Brasil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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MUÑOZ CONDE, Francisco; HASSEMER, Winfried. Introdução à Criminologia. Trad. Cíntia Toledo Miranda Chaves. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 92.
SCHUR, E. Labeling Deviant Behavior: Its sociological implications. New york: Harper and Row, 1971, p. 56, 69.
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VIANNA, Felipe Augusto Fonseca. A Influência da Mídia na Formação da Política de Drogas: O caso dos Estados Unidos da América. Boletim Conteúdo Jurídico, Brasília, v. 302, 2014.
WEBER, Max. Ciência e Política: Duas Vocações. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 60.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal: Parte General. 2. ed. Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 7, 8.